quarta-feira, 27 de outubro de 2010

orixás segundo Vilson Caetano de Souza Júnior





Reproduzo neste post textos sobre os orixás Oxun, Yemanjá e Xangô, de autoria de VILSON CAETANO DE SOUSA JUNIOR, antropólogo que escreve na coluna de Religião publicada no caderno de classificados do jornal A Tarde.


OXUN


A ARTISTA DO UNIVERSO


texto de VILSON CAETANO DE SOUSA JUNIOR*


Nos primórdios, Oxalá criou os sons, mas tudo continuava ainda confuso. Oxun combinou os diferentes tons. Ela havia acabado de inventar a música.

O culto ao orixá Oxun no Brasil confunde-se com o de Yemanjá, sua mãe. De acordo com o mito, Oxun teria nascido após a imposição das mãos de todos os orixás sobre a sua mãe.

Oxun é o princípio ancestral da maternidade, conceito que nos últimos anos passou a ser contestado por algumas correntes do movimento feminista, mas que ainda goza dentre os africanos valor fundamental. Enquanto alguns ancestrais são chamados de Ye, mãe, Oxun é chamada de Yeye, mamãe. Acredita-se que no momento da divisão dos poderes, enquanto alguns ancestrais brigavam pela terra, outros pelo ferro, Oxun apressou-se e pegou eyn, o ovo. A partir desse fato ela passou a acompanhar todos os acontecimentos.

Oxun está em tudo, pois ela regula tudo que é cíclico. Ela não somente comanda o ciclo menstrual, mas também as estações e o próprio movimento dos planetas. Oxun regula as marés, cuida das crianças e preside desde a fecundação ao amadurecimento dos frutos. A esse principio ancestral são consagradas todas as frutas.

Trinta anos atrás, quando ainda “a cidade de Salvador era um pomar”, no mês de dezembro, por ocasião da festa de Nossa Senhora da Conceição, barracas eram espalhadas em torno da Igreja para celebrar as “frutas do ano”.

Oxun foi a primeira pediatra do Universo. Ela auxiliava as crianças na hora de vir ao mundo ou retornar deste. Oxun assim acompanha os ritos de iniciação no mundo dos antepassados, pois ela está à frente de todos os nascimentos.

Desde cedo se associou esse principio ancestral às águas, Oxun, de fato, é todas as águas, sobretudo o líquido que preenche a placenta.

Na verdade, este princípio comanda “todas as coisas de dentro”. Oxun garante o funcionamento do nosso organismo. Assim, seu domínio vai além do sistema gastro-intestinal. Fato este que a fez desde cedo ser associada à comida. Se diz nos terreiros que Oxun é a dona da panela.

Se a panela representa o mundo, depois de tudo que explicamos, podemos dizer que Oxun dá sentido ao mundo, por isso é atribuída a ela a invenção da linguagem.

Como a costureira, Oxun une partes diferentes e o resultado é a quebra de fronteiras, a mesma observada no mercado.

Falando sobre o mercado, antes mesmo dos anos 60, referencial do momento em que algumas mulheres foram reividicando a sua independência, as sociedades yorubás já conheciam, além de mulheres no mercado de trabalho, sem abrir mão de sua maternidade, a figura da Yalodê, literalmente a “mãe que vai a rua”, ou a mãe que está na rua.

Ainda hoje podemos encontrar a Yalodê entre os yorubás. Trata-se de uma mulher designada pelas outras mulheres para tomar assento em decisões “fora de casa”.

A Yalodê fala no conselho por todas as mulheres e acredita-se que assim foi “desde o princípio do mundo”, quando Oxun foi convidada para acompanhar os orixás caçadores por todos os cantos da terra.

Outra imagem vinculada a Oxun é o pássaro. Verdade é que todas as aves pertencem a Oxun. Oxun cuida do mundo como a galinha cuida dos pintinhos embaixo de suas asas.

As histórias sobre este principio ancestral confundem-se com as histórias sobre a própria cidade de Salvador, cidade beira mar onde se canta em coro que “todo mundo é de Oxun”.

Segundo o Babalorixá Air José, três mulheres de Oxun comandaram a cidade no século passado: Maria Bibiana, Senhora de Oxun; Maria Escolástica, Menininha do Gantois, a Oxun mais cantada pelo mundo afora; e Caetana América Sowzer, a saudosa Yá Caetana Bagbosé.

Mãe Caetana era filha de Felizberto Sowzer, conhecido como Benzinho, que era filho de Júlia Andrade, filha de Tio Bangbose.

Benzinho era filho de Ogun e foi o responsável pela organização do jogo de búzios, conhecido como merindilogun no Brasil, conforme informações de seu neto consanguíneo Air José, filho de Tertuliana Souza, irmã de Yá Caetana.

No terreiro Pilão de Prata, a festa de Oxun realizada neste domingo [7.3.2010] é uma das mais concorridas. A festa é dedicada a Oxun de Mãe Caetana. Nesta comunidade, Oxun recebe o título de Yalê, mãe da casa.

Caetana América Sowzer ainda hoje é referenciada pelas pessoas que tiveram o privilégio de conviver com ela como mestra. Seu pai teria “traduzido” um dos sistemas adivinhatórios africanos mais complexos, mas coube a ela zelar com determinação pelos princípios fundamentais para a consolidação dos elementos civilizatórios negro-africanos no Brasil através da religião dos Orixás.

Mãe Caetana era uma Apetebi – como as esposas dos Babalawo, ela começava a transmitir as histórias sagradas desde cedo às crianças que tomava para criar.

Segundo o Pai Air, Mãe Caetana exigia que alguns momentos rituais, a fim de não se perderem, fossem registrados em cadernos, hoje amarelados.

Mãe Caetana era costureira, gostava de fazer bonecas, adorava artes. Era também músico, tocava violino.

Yá Caetana fez uma brilhante caminhada, como Oxun entendeu cedo que a serenidade vence qualquer guerra e que a simpatia é capaz de transformar qualquer momento em festa e alegria.

Hoje, aquela que foi chamada de Laju omim, olhos d’água, uma nascente, fonte, continua no mundo, agora no céu, certamente compondo a mais bela constelação, brilhando como uma estrela.

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VILSON CAETANO com estatuetas de Ibeji (Cosme e Damião), em sala do Terreiro Pilão de Prata, Boca do Rio, Salvador-BA. Foto de FERNANDO AMORIM | Agência A Tarde 24.9.2009





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YEMANJÁ


A MÃE DOS ORIXÁS

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texto de VILSON CAETANO DE SOUSA JUNIOR*

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Sem sombra de dúvida, Yemanjá é o orixá mais popular no Brasil e talvez isso valha também para outros países costeiros, ou a beira mar, como Cuba, onde esta é considerada a rainha da ilha pelos santeiros.

Como outros ancestrais nagôs, o culto a tal orixá realizado na cidade de Abeokutá e no rio Ogun sofreu um processo significativo de reinterpretação simbólica no Novo Mundo.

O exemplo mais ilustrativo disso, é a perda de características guerreiras em detrimento da exacerbação de elementos como virgindade, pureza e docilidade, ideais por excelência da figura da Virgem Maria que desde cedo recebeu atributos das deusas africanas, a exemplo de Isis, de quem herdou o título de Mater Dei e de outras deusas gregas e romanas.

Diferente da ideia de humildade e submissão, características esperadas das mulheres pelos gregos como a terra que sustenta o céu, Yemanjá está no começo da criação do Mundo. Acredita-se que ela forma um par criativo com Oxalá. Isso explica a sua profunda relação com o elemento água, cheio de significados na maioria das civilizações.

Por exemplo, algumas mulheres indígenas do litoral se lavavam na praia, pois acreditavam que a espuma do mar as tornava férteis.

Yemanjá é o princípio criativo da fertilidade. Ela está na terra, nos grãos, nos rios, nos mares, em todas as mulheres e em todos os seus filhos, que coparticipam desse poder graças à força conferida pelas Grandes Mães.

As representações desse Orixá, que desde cedo foi associado às sereias, ao longo da história recebeu elementos que lhe afastam da representação africana. Em algumas dessas, para se falar da noção de beleza, se fez uso de características não negras. Desta maneira, a representação da mulher com seios volumosos e formas arredondadas cedeu lugar para a imagem de uma mulher branca, cabelos lisos e corpo magro e esguio.

Não estamos com isso contestando a capacidade de o devoto fazer a sua experiência religiosa nessas representações, mas chamando a atenção para o fato de que as imagens do sagrado vinculam visões de mundo e expressam valores da sociedade que lhe está produzindo o tempo todo. O problema está quando não nos damos conta disso.

Sobre isso, as mulheres do movimento negro iniciaram já há alguns anos uma crítica e tem se avançado muito.

E a sereia? Sempre disse que é o contrário do princípio da Grande Mãe, por tratar-se de seres que carregam a “maldição” de não poderem ter filhos, o contrário de Yemanjá, mãe dos Orixás, a menos daqueles ligados à dinastia de Oyó, como Ogun, Odé, Xangô e Oxun.

Da sereia grega, o símbolo que estabelece melhor diálogo com Yemanjá é a imagem do peixe que como o pássaro, o leque e as águas são considerados “princípios femininos” que não podem ser compreendidos em contraposição a outros.

Dessa maneira, o atributo por excelência da Grande Mãe é a guerra. Segundo um de seus mitos, ela teria ensinado Ogun a forjar as “pencas”, depois transformadas nos famosos balangandãs que, mais do que enfeites, cumprem funções de proteção; depois a espada para defender o seu reino.

Outra história conta como Yemanjá venceu alguns inimigos que marchavam em direção ao seu reino. Ela teria se enfeitado e levantado o seu leque que, em contato com o sol, multiplicou o seu exército.

Sobre a origem dos presentes oferecidos às águas, já explicamos no texto sobre as oferendas. Trata-se de uma prática antiga que pode ser encontrada em várias civilizações. A sua origem está na concepção do valor da troca de presentes com os ancestrais verdadeiros responsáveis pela manutenção das comunidades.

Nos últimos anos grupos ambientalistas têm aberto a discussão sobre o nível de poluição representado pelos presentes a base de produtos não degradáveis, como plásticos, vidros e outros. Claro que o povo de Candomblé não pode ser responsabilizado pela poluição dos mares, talvez isso valha para as indústrias e empreendimentos imobiliários que poluem as águas todos os dias a toda hora.

Temos, todavia, que estarmos atentos àquilo que oferecemos. Afinal, nossos antepassados não conheceram alguns presentes que hoje teimamos em colocar nas águas, e se tivessem conhecido, sem sombra de dúvida não colocariam, pois sabiam que o maior presente são os grãos, as flores e a nossa vida.

Nos terreiros de tradição nagô, diz-se que ela cuida de nossas cabeças e de tudo que se relaciona ao equilíbrio. Nas tradições angola-congo, este princípio é evocado com o nome de Kaia, mas há também tradições que o chamam de Aziri Tobossi, como a jeje.

Mais do que a designação, cada comunidade possui estórias próprias para falar desse ancestral da fertilidade que não pode ser encerrado na concepção da maternidade, afinal, há várias maneiras de conceber.

Vale mesmo não se afastar da ideia de que cada ser vivo que nasce é um ancestral que se faz presente através da constituição de longas famílias. Assim, Yemanjá, Kaya, Aziri Tobossi e mesmo Yara estão em tudo. Talvez no início tal princípio tenha sido associado às águas graças à importância que estas cumpriam nas civilizações responsáveis por tal representação.

O principio de fertilidade está, na verdade, em tudo. Ele garante o equilíbrio das coisas, as mantendo entrelaçadas como escamas, nos fazendo peixes filhos de uma mãe cujo filhos são peixes. Ye/ Omo/ Ejá.

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XANGÔ


AO REI DO MUNDO…

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texto de VILSON CAETANO DE SOUSA JUNIOR*

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Xangô é rei. É rei no Batuque do Rio Grande do Sul, é rei no Xambá de Pernambuco, estado onde o seu nome é evocado para designar as religiões de matriz africana, é rei nos candomblés nagôs do Recôncavo baiano, é rei no Tambor de Mina no Maranhão e é rei nos candomblés jeje nagô na cidade de Salvador.

Não vamos entrar no mérito de suas histórias, falar sobre os vários mitos, sobre a sua origem, mas sobre o significado da figura do rei para a consolidação de identidades negro-africanas fragmentadas através da escravidão.

Em algumas cantigas, Xangô é reverenciado como rei do mercado, Obá loja e rei do mundo, Obá aiyê. Mercado, coração das sociedades iorubás, onde se alternavam o tempo todo bens materiais com simbólicos.

Verdade é que no Brasil, essa figura foi fundamental no processo de reconstrução e manutenção dos elementos civilizatórios negro-africanos no Novo Mundo. Não poderia ser diferente, manifestação do Divino, a figura do rei representa continuidade, a permanência da grande família africana inclusiva, que com o passar do tempo foi ampliada a fim de agregar novos membros, agora descendentes de portugueses, índios, judeus, ciganos e tantos outros.

O culto a Xangô é assim o culto à continuidade, à descendência, à família mantida viva graças às mulheres e as crianças. Daí a sua relação com os antepassados e o por que de Xangô ser o ancestral mais festejado na sociedade secreta de Egungum ou nos rituais fúnebres, ocasião em que os iniciados levam no pescoço uma conta em sua homenagem.

Ao contrário do que se diz, o culto a Xangô possui relações estreitas com a morte, com o culto aos antepassados, pois ele mesmo representa toda a sua descendência.

Mas de onde surgiu a ideia de que “Xangô tem medo da morte”? Talvez da má compreensão da simbologia do rei, associada a outras leituras.

Explicando: ao contrário do que muitas pessoas afirmam, o elemento de Xangô é a terra. Seu culto rememora as civilizações que desde cedo foram estabelecidas pelos africanos.

Xangô é dono de tudo que existe em cima da terra. Graças a essa relação, desde cedo esse ancestral foi evocado como pedra e tudo que estas significam numa edificação. Desta maneira este princípio ancestral está presente nos corpos celestes.

Essa relação entre as pedras e o corpo é muito antiga e pode ser encontrada em algumas regiões do Mediterrâneo e partes do Continente Africano.

Fogo, assim, e tudo que ele representou para a humanidade, era então obtido através da fricção destes dois corpos. Porém, anterior a esse momento, é bem provável que a humanidade já utilizasse as pedras para reter o calor, aproveitando para conservar os alimentos.

Já demonstramos em outro momento que a temperatura é algo fundamental para os seres vivos. Quando o corpo perde o seu calor, princípio de vitalidade, acredita-se que ele está morto.

Não podemos confundir esse momento com os Antepassados. Estes, como Xangô são muito quente, pois estão vivos, continuam sob as tiras de pano que separam de nossos olhos o mistério da vida e da morte.

Assim, quando evocamos o Rei nos rituais fúnebres, estamos afirmando que acreditamos na nossa ancestralidade e que ela é a garantia de nossa permanência para sempre no mundo.

Quanto ao corpo, devolvemos à terra, pois como já comentamos, dessa devolução depende a continuidade da vida dos que virão. Afinal, tudo não é cíclico? Tudo não é uma manifestação do Sagrado?

A partir dessa explicação podemos pensar várias coisas. É certo que africanos e africanas tinham em mente a concepção de que as pedras deveriam estar juntas para poder produzir calor a fim de manter-se vivas. E assim fizeram.

Assim uma das características do culto ao rei preservada no Brasil foi a presença de muitas pessoas. O culto a Xangô requer muitas pessoas. Como se diz. Xangô adora gente. E o que é o mercado? Nada mais do que indivíduos que rompem suas fronteiras, quebram tabus. O rei também adora festas, comidas, bebidas.

Não foi a toa que quando os africanos organizaram os primeiros afoxés, o rei ia à frente, que digam os maracatus de Pernambuco.

E falando em Maracatu, como não falar da Kalunga, a boneca que diviniza nossos antepassados?

Falando sobre esse ancestral, no Brasil não podemos deixar de mencionar o nome de Tio Bangboxé. Ele teria chegado ao Brasil para ajudar na constituição de alguns terreiros de Candomblé que se formavam na cidade de Salvador no século XIX, onde o culto a Xangô era elemento central.

Fiel à sua missão, Bangboxé Obitikó constituiu no Brasil longa descendência através da família consanguínea que formou e da religiosa que desde cedo constituiu através de suas viagens a Porto Alegre, Rio de Janeiro e Recife.

Ainda hoje membros da família Bangboxe vêm da Nigéria visitar seus descendentes brasileiros.

O Babalorixá Air José lembra com saudade quando há dezesseis anos, sua tia consanguínea e bisneta de Tio Bangboxe passava horas conversando com seus parentes na sua casa, situada à Rua Xisto Bahia.

Da família consanguínea, destacamos a figura de Tia Júlia. Era filha do Tio Bangboxé; e da religiosa, Eugênia Anna dos Santos, a inesquecível Mãe Aninha que cem anos atrás fundou o Ilê Axe Opo Afonjá.

No terreiro fundado por Tia Júlia no Matatu, está à frente ainda hoje Irenea Sowzer, filha de Xangô e última bisneta do Tio Bangboxé. E no Terreiro da Rua Xisto Bahia fundado por Yá Caetana, está Yá Haydee Paim, também de Xangô.

Xangô que é rei, que gosta de coisa bonita e é muito vaidoso. Não no sentido pejorativo que utilizamos a palavra. Vaidade no sentido da autoestima.

O culto a Xangô nos faz olhar para dentro de nós mesmos, nos faz perceber que quando permanecemos unidos como pedras que formam o alicerce de uma construção, somos fortes. Ele ainda nos impulsiona a lutar contra todos aqueles que não se alegram com a nossa alegria. Viva o Rei!!!!

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*Vilson Caetano de Sousa Junior – Antropólogo, doutor em Ciências Sociais pela PUC de São Paulo, pós-doutoramento em Antropologia pela Unesp

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