domingo, 28 de março de 2010

Lembranças de Infancia





Lembro-me bem que em casa minha mãe possuía uma imagem de Iemanjá, enorme. Eu era apenas uma menina. nasceu dentro de mim, um carinho diferente por aquela senhora, de braços abertos, sorriso estampado, um manto em tom azul, com conchas caindo por seus braços, como diz hoje minha filha “glamurosa”, parecendo levitar sob águas em constante movimento. Sentia que era ela quem cuidava de mim como uma boa mãe que sempre foi, daí o meu amor incondicional a esse orixá.

Lembro-me que ao chegar à fase adulta e estarmos em melhores condições nos mudamos para um bairro onde tem uma Iemanjá na areia da praia, só que em dimensões ainda maiores, e é essa senhora que hoje minha filha adora gritar seu nome quando o carro pela ponte que fica próximo a ela passa; hoje eu, minha mãe que por sinal é filha de Iemanjá e minha filha sempre que pudemos vamos aos pés de Iemanjá e sob o som do mar, silenciosos, fazemos nossos pedidos, acendemos velas, agradecemos. A sensação de alívio e de proteção que é incrivelmente pessoal e intransferível.

Recordo-me também da delícia que era dona Lô, aquela senhorinha amável que adorava doces, muito simpática, com um ramo de “ervas mágicas”, rezando-as bem baixinho por todo o meu corpo, pedindo aos santos que mandem suas energias para me proteger, ou até mesmo das lindas festas de São Cosme e Damião do terreiro dessa mesma senhorinha, onde adultos inclusive seu filho, incorporados com os Erês brincavam conosco como se fossem verdadeiramente crianças. lembro-me bem de um homem menino arteiro, saltitante e levado chamado Lírio.

Hoje, após tantos anos, recordo-me do cheiro do mel, do dendê no fogo, das lindas festas, das comidas deliciosas, que na época era a ekédji Maria dos Prazeres que fazia, haaaaaaa como admirava aquela baixinha que se foi para junto dos nossos ancestrais, guardo-a comigo no coração porque tenho certeza de que fui muito amada por aquela mulher sábia, que mesmo na mais alta humildade de condições me ensinou muto do que hoje sei sobre cozinha de terreiro, ela foi a primeira a falar qual era de fato o meu orixá, sinto na boca o gosto que é se lambuzar com os bolos e doces das festas dos caboclos, das reuniões de de iniciação em jurema, onde o pai de santo sempre perguntava "quem pode mais do que Deus? e nós sob a aurea e o forte cheiro de alfazema respondíamos, ninguém". hoje estou caminhando para me tornar uma mãe pequena de uma casa de “culto dos deuses africanos”, na nação nagô, meu encontro se dá nos segredos das cozinhas dos orixás.

É na batida do tambor, no ijexá toque cadenciado pra oxum, na água da quartinha, no banho de folhas e ervas, no assentamento de meu pai Xangô, na riqueza de seu padê, no omolocum de Oxum e acarajé de Iansã, nos mitos dos orixás, que encontro minha esencia do meu self.

Explico-me. Self é a compreensão de que os orixás, energias-arquétipo se manifestam na natureza e na vida humana, não como se estivessem fora do indivíduo, mas dentro dele, em contato constante. Ou seja, o orixá está em cada um de nós, de modo indissociável, “do nascimento à morte, da fome a fartura, da alegria à raiva, do amor à dor. Daí a necessidade de nos “apossarmos” desses deuses e deusas como o próprio self, símbolos representantes das forças básicas da vida, de nossa vida.

O projeto do Restaurante teve inicio a partir de um sonho que eu tive logo após de dar uma oferenda aos orixás onde nesse dia eu ofertara uma cesta de presentes para oxum, digo que ao dormir sonhei cozinhando pra um monte de pessoas comuns, num ambiente que não era uma casa de santo, mas sim de um restaurante onde era servido o “Banquete dos Orixás”. Ao acordar não conseguia parar de pensar nesse sonho, o que fez com que eu viesse a comentar com um amigo e meu Babalorixá, ao ouvir o meu relato este perguntou se eu havia feito algum pedido em relação a minha vida profissional na cerimônia da entrega dos presentes a oxum, e eu respondi que sim, porque acabara de me formar em designer de interiores, mas não sabia ao certo se tinha feito a escolha certa, então tinha pedido para oxum me abençoar e ajudar a clarear minhas idéias para que ela apontasse um caminho pra eu seguir.

O babalorixá me confidenciou que são muito comuns os sonhos logo após uma oferenda bem aceita pelos orixás e que talvez este tivesse sido um recado dos orixás pra mim, escolher que caminho seguir...

É bem verdade o meu dom natural de cozinhar bem, e que por isso fui escolhida pelo orixá da casa para coordenar a cozinha dessa mesma casa de santo, mas nunca achei que poderia um dia viver disso, pois sempre cozinhei pra amigos como forma de exercício de generosidade, pois acredito que o maior tempero de uma comida é o amor, amor este que costumo botar em tudo o que faço.

Outro ponto também é que talvez esse projeto tivesse incutido na minha cabeça, mas eu nunca pensara dessa forma ao ponto de torná-lo um projeto de vida, eu sempre me fiz perguntas tipo: como seria a reação das pessoas se elas pudessem ter o acesso a estas comidas? Ou melhor, o que pensariam algumas pessoas quando comessem algumas comidas sabendo da sua origem? Sabendo que essas mesmas comidas são usadas nas oferendas dos orixás.

E a origem do nome “pedrinha de aruanda”, foi depois de uma nova conversa com uma entidade que pra mim é muito especial João Felipe de Aguiar, Um mestre da linha de jurema que eu costumo conversar sempre, pois pra mim ele é muito mais que uma
Entidade, pra mim ele é um ser de luz, um anjo da guarda que sempre recorro em todos os momentos da minha vida, pois sem eu falar o sonho que tive, ele falou minha querida Carmen você deve encontrar sua felicidade dentro de você e procurar le ouvir melhor, seguir mais sua intuição, “vejo você em algo com simplicidade e ares de palácios”, o que você tem a fazer é tentar algo que todo mundo goste, mas que você consiga fazer sua diferença.

Então imediatamente confidenciei o meu sonho e meu desejo e temor que envolvia todo esse projeto; temia perder o pouco de dinheiro que possuía, temia o preconceito das pessoas, com um desejo que poderia chegar aos extremos a glória ou a ruína, então ele me falou uma coisa que me fez ir as lágrimas “filha corra atrás do seu sonho, não fique esperando as coisas surgirem como facho de luz, eu posso energizar você, deixar você aberta pra que você receba tudo de bom que a vida pode te oferecer, abrir teus caminhos, mas nunca as coisas cairão do céu, Deus deu livre e arbítrio as pessoas e eu posso te aconselhar mas não posso mudar o que Deus escreveu pra você”.

Ao ouvir aquilo que tanto me emocionara eu cair em mim e decidi que não só iria abrir o Restaurante, como também iria me especializar naquilo, pois era fato que eu sabia de cor e salteado tudo o que acontecia nas cozinhas das casas de santo , eu mesma já tinha preparado por diversas vezes as oferendas dos orixás, então decidi fazer graduação em gastronomia mas não seria um curso estudado em qualquer instituição, teria que ser numa instituição conceituada e respeitada por todos, decidi fazer no SENAC, para além de conhecer toda a culinária mundial, eu aprenderia técnicas de gestão de pessoas, manipulação e técnicas de armazenagem de alimentos, eu mesma criar meus pratos e me especializar na comida que hoje chamam de afros brasileiras.

E o nome Pedrinha de Aruanda surgiu na toada que esse mesmo mestre canta toda vez que vai embora... E ao ouvir aquela toada tantas vezes já cantada por mim veio aquela sensação de que era aquilo mesmo que queria, ao ouvir trechos dessa canção; “pedrinha miudinha de aruanda êêêê, lajedo tão grande pedrinha de aruanda êêê”.

É bem verdade que a linha do povo de aruanda engloba outros seguimentos das casas de santos, mas também tem os orixás que serão o ponto focal desse projeto cultural, pedrinha que é algo pequenino, um pedacinho e aruanda que significa o Édem pra nós, o céu pros católicos então o nome pedrinha de aruanda significa “pedacinho do céu”.
E é esse projeto misto de magia, culinária e decoração onde eu contarei através dos pratos servidos na casa toda a história dos orixás partindo do quadrado amoroso vivido pelos orixás Xangô, Obá, Iansã e Oxum, contando de uma maneira linda toda a magia e encantamento da culinária que envolvia os protagonistas dessa história a começar pelo dia em que Obá cortou sua própria orelha para servir num prato de caruru a Xangô acreditando na deusa Oxum que dizia que ele adorava os seus pratos por causa da orelha... Onde servirei o famoso banquete dos orixás um pouco de tudo que é servido aos orixás nas oferendas, com toques genuinamente brasileiros para que todos possam saber a origem e mergulhar nesse mar não só das histórias dos orixás e da áfrica como também as historias do início da cultura negra no Brasil e no mundo.

Culinária dos Orixás




Certo que os Orixás comem o que os homens comem, porém, recebem a seus pés, nos terreiros, comidas onde os modos de preparar, ao lado dos saberes: palavras de encantamentos (fó), rezas (àdúrà), evocações (oriki) e cantigas (orin) ligadas a estórias sagradas (itan), são elementos essenciais e vitais para a transmissão do axé ”
Vilson Caetano de Souza Junior

Existem certas peculiaridades no Candomblé que às vezes as pessoas não compreendem muito bem. Uma delas explica-se pelo fato da culinária, dentro da casa de Candomblé, ser de grande importância porque as comidas oferecidas aos Orixás são sagradas e imprescindíveis, tornando a cozinha um lugar de grande movimento. Por isso vou explicar de uma maneira simples o significado da comida para o "povo de santo", como se diz no Brasil. A narrativa é baseada em algumas pesquisas bibliográficas e em experiência vivenciada dentro do candomblé, desde criança onde costumava freqüentar a casa de uma Ialorixá hoje centenária a Sra. Maria Rodrigues Pinto, ou simplesmente como ainda a chamam tia Lô. Eu sempre muito observadora achava lindo ver as mulheres do terreiro preparar os pratos dos orixás, me encantava a forma como era feito, com cânticos, a alegria, e muito respeito ao culto aos Orixás.

Encantava-me mais ainda ver que o acarajé que hoje é um patrimônio nacional se originou na áfrica e que é dado como oferenda ao orixá Iansã senhora dos ventos e tempestades, e que manjar que não é por acaso que algumas pessoas chamam de manjar dos deuses ele é realmente servido para uma deusa a mãe de todos Iemanjá.

Conta-se que no começo era tudo água, e depois da criação do mundo, os deuses que habitaram a terra antes mesmo dos homens, e durante algum tempo juntamente com eles, alimentavam-se de acordo com suas preferências. Como tudo no mundo foi dividido entre eles, a alimentação também o foi, surgindo assim as iguarias prediletas de cada Orixá.

Dividir o alimento com os deuses é ter a insigne hora de comer com eles, garantindo, dessa forma, a presença dos Orixás em nossas vidas e da refeição em nossa mesa.
Vocês não têm noção o quanto triste é ver um orixá que ao chegar em terra, fala muitas vezes com mais gestos e lágrimas que estão com fome, pois alguns filhos de santos se esquecem dos orixás e passam anos para fazer uma oferenda aquilo que chamamos de obrigação, pois orixá bem alimentado é a certeza de que tudo que depender deles dará certo em nossas vidas, ao vermos os búzios alafiá que estamos protegidos pelos orixás e que eles estão intercedendo perante Deus e Orumilá em nosso favor em tudo que vamos fazer em nossas vidas, ao descuidarmos dos nossos orixás esquecendo que eles comem e que precisam transmitir o seu axé através da comida, somos esquecidos por ele e tudo se fecha quando o nosso anjo da guarda nos abandona, estamos suscetíveis a coisas negativas em nossas vidas.

Ao preparar as comidas de santo, deve-se observar os tabus de cada um deles. Por exemplo, o azeite de dendê nunca deve ser oferecido a Oxalá, o mel é proibido a Oxóssi, o carneiro não pode sequer entrar em uma casa consagrada a Iansã etc. Os filhos de santo devem observar todas as quizilas dos seus Orixás e, sendo parte do Orixá, também não podem consumi-las.

A ijoyé encarregada de preparar as comidas dos Orixás é a Ìyá Basé, um cargo outorgado apenas a mulheres de grande sabedoria e respeito junto à comunidade. Ela é a mãe que conhece todos os segredos da cozinha e que sabe que o principal ingrediente para uma boa comida de santo, capaz de alcançar as mais altas dádivas, é o amor.

O primeiro Orixá cultuado também é o primeiro a comer, Exu ele come tudo que a nossa boca come, as oferendas dadas ele mais comumente são os padês a base de farinha de mandioca branca, combinada com azeite de dendê ou mel de abelha, água, bebida alcoólica e acaçá vermelho feito com farinha de milho amarelo e enrolado em folha de bananeira. em algumas ocasiões também são utilizados pimenta, cebola, bife e moedas nas oferendas a este Orixá.

Nas oferendas a Ogum são dados inhame assado com azeite de dendê e feijoada.
Oxóssi come axoxó feito com milho vermelho cozido decorado com fatias de coco. Ele também aprecia frutas e feijão fradinho torrado. As comidas devem ser colocadas sob o telhado ou aos pés de uma arvore.

A oferenda dada a Obaluaiê é a pipoca. Utilizando areia da praia para estoura-las e enfeitando com fatias de coco.

Oxumare prefere que sejam dados em oferenda a ele, bata doce amassada e modelada em forma de cobra e também farofa de farinha de milho com ovos, camarões e dendê.
Ossaim prefere acaçá, feijão, milho vermelho, farofa e fumo de corda.

O acarajé de forma arredondada com dendê é a oferenda consagrada a Iansã, mas também é do agrado de Obá.

Obá também tem preferência por um bolinho de nome abará que consiste em uma massa de feijão fradinho temperado com dendê enrolado em folha de bananeira e cozido em banho-maria.

O omolocum, feijão fradinho cozido com cebola, camarões e azeite de oliva e decorado com ovos cozidos e descascados é de Oxum.

Iemanjá prefere peixe de água salgada, regados ao azeite e assados, milho branco cozido e temperado com camarões, cebola e azeite doce, manjar com leite de coco e acaçá.

A Nanã é oferecido efó, mungunzá, sarapatel, feijão com coco e pirão com batata roxa.
O amalá pertence a Xangô. O amalá (pirão de inhame) deve untar o fundo da gamela e sobre ele é colocado o caruru decorado com pedaços de carne, camarões, acarajé e quiabo, doze unidades de cada e enfeitado com um orobô. É válido lembrar que a oferenda deve ser servida quente.

Oxalufã só aceita comidas brancas e tem preferência por milho branco cozido e sem tempero.

O inhame pilado é oferenda de Oxaguiã.
As comidas oferecidas a Orixás Funfun, devem ser sempre colocadas em louças brancas.

Um dos significados que podemos atribuir à palavra Axé é o da transmissão de força e recriação, evidenciada na lei de que tudo que dispomos na natureza, até mesmo a vida, devemos a ela devolver. Por isso, quando queremos levar nossos pedidos aos Orixás, o fazemos através de uma oferenda em forma de comida. Sabemos que estes pedidos serão ouvidos de acordo com a forma como são transmitidos. As oferendas quando devolvidas a terra ou à água transformam-se no húmus fertilizante que auxiliará na geração de novas vidas. Quando os pássaros, por exemplo, carregam esta alimentação para outros lugares, estão levando as sementes que germinarão em outras paragens. Nesse momento está se concretizando uma das formas mais bonitas de transferência de Axé.

é importante a conscientização dos terreiros para que procurem sempre colocar essas oferendas de matéria orgânica em vasilhas biodegradáveis, ou fora delas, direto no local. o uso de recipientes de vime forrados com folhas, balaios e sacos de pano, deve ser usado por todos, pois tudo isso se desfaz na natureza e não a polui, nem causa acidentes. Este zelo com a natureza é que nos caracteriza como cultuadores dos Orixás, que são os deuses da mãe natureza. Para continuarmos cultuando os Orixás, precisamos conservá-la. Pois, onde não há água limpa, muitas árvores, terra boa, não há habitat para os Orixás.

Posso afirmar, em conclusão, que no Candomblé a alimentação é uma das coisas mais importantes para o desenvolvimento das práticas religiosas. Inclusive, é importante destacar que comer desses alimentos também constitui uma forma de receber o Axé. Durante o oferecimento das comidas são realizadas saudações e entoados cânticos em forma de orações, invocando a força dos Orixás e pedindo que eles aceitem o que lhes é entregue de bom grado. Essa oferenda, então, passa a estar impregnada de toda força invocada, que também é Axé. Por isso devemos comê-la com concentração e em silêncio, pois estamos partilhando de um momento sagrado com os orixás.

Haveria muitas outras formas de falar da importância da comida no candomblé. Porém, a intenção desse trabalho é de fornecer algumas receitas dessa culinária maravilhosa, que é o banquete dos Orixás, do qual nós, seres humanos, às vezes temos a honra de compartilhar com eles, pois são deuses próximos de nós, que vêm falar com a gente, que dançam entre as pessoas. Talvez seja esse um dos motivos pelos quais nos apaixonamos por eles.