quinta-feira, 12 de agosto de 2010

Comida de Santo


Explorando o assunto Comida de Santo, pode-se encontrar na literatura alguns textos. Fazendo-se agora um resumo e algumas colocações. Nina Rodrigues, em seus estudos, ao abordar à arte da culinária africana, achou difícil precisar, devido ao estado atual dos costumes, à quais grupos pertenceriam determinadas comidas. Já Manuel Querino assinalava que a contribuição dos grupos bantos, angolanos e jejes eram maiores que as dos nagôs, contrariando a tese dos que insistiam na sua predominância.

Nos terreiros, esta cozinha, marcada por uma série de preceitos e interdições, vai aparecer relacionada diretamente aos deuses através das chamadas comidas do santo. Assim, cada um deles irá receber em dias especiais (ou não) pratos de sua preferência. Não se trata, porém só de comer e sim o que se come, o que não se come, quando se come, com quem, participam de um todo integrado que diz respeito a códigos imprescindíveis dentro da culinária dos deuses. E mais ainda, esta comida dentro da dinâmica dos terreiros é um dos veículos de vital importância para a transmissão e distribuição de axé.
Seja essa comida reelaborada a partir de técnicas e maneiras predominantemente banto, jeje ou yorubá, esse negros modificaram as refeições do reino como já exposto. Outro fato que deve ser considerado é a falta de mantimentos num país desde o começo assolado pela fome. Da nova terra, o português ao lado das caças e muitos frutos, só pôde aproveitar a mandioca e o milho que eram alimentos básicos para o sustento e o qual era oferecido aos negros. Adotar os mantimentos da terra, ao lado de importar tantos outros como, por exemplo, o gengibre, arroz, inhame, banana, coco, dendê, foi à solução encontrada pelos portugueses para suprir a falta de alimentos. Cascudo (1970) diz que ao fim do séc XVIII os produtos americanos já estavam tão difundidos na África portuguesa que participavam das refeições nos negros, escravos ou livres.
Os ingredientes africanos vindos da áfrica, como o quiabo, o inhame, erva-doce, gengibre, gergelim, amendoim, melancia, dendê e outros foram entrando aos poucos no Brasil de acordo com as exigências do tráfico ou da população aqui estabelecida. Não é possível, no entanto, se pensar nesta cozinha e nem em uma outra somente a partir de tais elementos. Ela é mais do que um conjunto de matérias naturais que podem ser adaptados e substituídos. Esse próprio fato obedece a uma certa ordem inscrita nos mais remotos tempos, fazendo com que a comida não perca seu sentido nem se afaste da visão do mundo que ela representa. O que dá identidade à determinada comida não é a origem dos vários ingredientes combinados, mas a maneira como estes elementos são combinados. E estas maneiras obedecem a determinados ritos que lhe dão sentido e, como tais, apresentam-se como algo criativo. Assim, é completamente arbitrário buscar precisar datas para essa culinária, entendendo esta como algo parado, fechado, se o próprio tempo se incumbiu de dinamizá-la.
As condições de possibilidade para se pensar uma cozinha africana não podem ser pensadas em nível cronológico, assim como não podem prescindir desse tempo. Elas vão acontecendo, se dando, de acordo com o tipo de situação servil ou livre e o lugar em que vivia o africano, variando, desde o primeiro momento em que dividiu a cozinha com as africanas cozinheiras, até quando pôde, ante as novas condições suscitadas pelo processo histórico, negociar um tabuleiro.
O processo de criação das comidas africanas também se deve a importância dos jejuns e das festas regulados pelas igrejas ( outra questão complexa que não cabe abrir aqui). Os africanos tiveram também que adaptar às vezes sua alimentação, a hora e quantidade que se podia comer impostas pela igreja. Todavia, quando puderam providenciar seus próprios alimentos. é muito provável que tenham lançado mão do conhecimento acumulado e das várias experiências trazidas de suas terras, já somadas a tantas outras.
Tudo isso que foi colocado pelos autores não se trata de um retorno à África, mas fazer com que comida se faça africana, ou seja, remonte a histórias e passagens, visões de mundo associadas aos ancestrais, princípios universais ou antepassados, aos primórdios dos tempos quando estes fundaram a humanidade, constituíram as cidades e criaram os diferentes grupos. Visões de mundo juntadas a inúmeras outras experiências históricas constituídas no Novo Mundo. É este fazer que faz com que tal comida seja comida de santo.
A comida de santo diferencia-se, assim, daquela do dia a dia. Uma coisa é cozinhar um inhame e dividi-lo em pedaços e come-lo no café da manhã. Outra é preparar esse mesmo inhame para Oxalá, quando variam desde o tamanho, a forma das raízes, os procedimentos observados para sua feitura e por fim, as palavras ditas para encantar a comida. Fazer um feijão no azeite não é o mesmo que preparar um Omolocum. Neste nada pode se escapar, se escolhe bem os grãos, pois Oxun liga-se à fecundidade. Os deuses comem comida mais elaborada. Embora os ingredientes sejam os mesmos, mudam o tratamento que estes recebem. E a forma como estes são tratados expressa seu sentido através de um ritual onde nada é por acaso. Assim, Exu pode comer de tudo com já dizia um de seus mitos. Ogun pode receber feijoada, uma vez que as carnes gordas lhe pertencem. E Oxossi por se ligar a terra, recebe todos os frutos dados pelo Novo Mundo.

FONTE: Faces da Tradição Afro-Brasileira – CNPq
Santo Também Come - Raul Lody

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